Estudo inédito da Faculdade de Medicina da UFMG e do IESS indica que os chamados “eventos adversos” podem ser uma das principais causas de morte dos brasileiros. Documento indica a necessidade de o País avançar na transparência de indicadores de qualidade da saúde


A cada três minutos, mais de dois brasileiros (2,47, exatamente) morrem em um hospital público ou privado como consequência de um evento adverso, determinando um resultado assistencial indesejado relacionado aos cuidados prestados ao paciente – por exemplo, erros de dosagem ou aplicação de medicamento, uso incorreto de equipamentos e infecção hospitalar, entre inúmeros outros casos. Não significa, necessariamente, que houve negligência ou baixa qualidade, mas, trata-se de incidente que poderia ter sido evitado, na maior parte das vezes. Além da morte, os eventos adversos também podem gerar sequelas com comprometimento do exercício das atividades da vida do paciente.

Em 2015, considerando o sistema de saúde nacional (público e privado), os óbitos provocados por essas falhas foram estimados em 434,11 mil, ou 1,19 mil/dia, pelo estudo inédito “Erros acontecem: A força da transparência no enfrentamento dos eventos adversos assistenciais em pacientes hospitalizados”, do Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), produzido pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a partir de um termo de cooperação entre as duas instituições.

O documento foi  apresentado na última quarta-feira (26/10), durante o “Seminário Internacional Indicadores de Qualidade e Segurança do Paciente na Prestação de Serviços na Saúde”, realizado pelo IESS no Hotel Renaissance, em São Paulo.

Apenas para efeito de comparação, em 2013, o País registrou 339,67 mil mortes por doenças do aparelho circulatório. Para se ter outra referência comparativa, dados do Ministério da Saúde indicam que as mortes no trânsito brasileiro estão em torno de 45 mil, ao ano, enquanto dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública) indicam 58,49 mil mortes violentas no País, em 2014.

Evento adverso como causa de morte

Os dados do trabalho da UFMG/IESS apontam, potencialmente, os eventos adversos em pacientes hospitalizados como uma das principais causas de morte no Brasil. O objetivo do trabalho está em realizar, pela primeira vez, o dimensionamento do problema e iniciar um amplo debate nacional sobre a transparência das informações na prestação de serviços de saúde e segurança do paciente.

“Não existe sistema de saúde que seja infalível. Mesmo os mais avançados também sofrem com eventos adversos. O que acontece no Brasil está inserido em um contexto global de falhas da assistência à saúde nos diversos processos hospitalares. A diferença é que, no caso brasileiro, apesar dos esforços, há pouca transparência sobre essas informações e, sem termos clareza sobre o tamanho do problema, fica muito difícil começar a enfrenta-lo”, afirma o médico Renato Couto, professor da UFMG e um dos autores do estudo, junto com a médica Tania Grillo Moreira Pedrosa, e o farmacêutico Mario Borges Rosa.

No mundo, segundo o estudo, ocorrem anualmente 421 milhões de internações hospitalares e 42,7 milhões de eventos adversos, um problema de saúde pública reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Nos Estados Unidos, país com população de quase 325 milhões de pessoas, são registrados cerca de 400 mil óbitos por ano provocados por eventos adversos, sendo a terceira principal causa de mortes no país, depois de doenças cardiovasculares e câncer.

O estudo apresenta um conjunto de cenários para projetar a incidência de mortes provocadas pelos eventos adversos nos hospitais brasileiros. No mais conservador, a projeção é de 104,18 mil casos por ano, se toda a rede hospitalar brasileira fosse parametrizada por padrões de excelência, como certificações internacionais no nível mais elevado. Entretanto, como a maioria dos hospitais brasileiros não cumpre esses requisitos, a base mais realista do estudo é a que aponta até 434 mil mortes em 2015.

O superintendente executivo do IESS, Luiz Augusto Carneiro, sustenta que o estudo foi desenvolvido tendo por o objetivo abrir um debate nacional sobre a qualidade dos serviços prestados na saúde, a partir da mensuração de desempenho dos prestadores e, assim, prover o paciente do máximo possível de informações para escolher a quem ele vai destinar seus cuidados.
“Hoje, quando alguém escolhe um determinado hospital para se internar, é uma decisão que se baseia na sua percepção de qualidade, na recomendação de um médico ou na opinião de conhecidos. Mas ninguém tem condições de garantir que aquele prestador realmente é qualificado, simplesmente porque se desconhece seus indicadores de qualidade. Não há como saber quantas infecções hospitalares foram registradas no último ano, qual é a média de óbitos por diagnóstico, qual é a média de reinternações e por aí afora”, afirma. “Será que o paciente não quer saber essas informações antes de decidir quem vai cuidar da sua vida?”, indaga.

Esse padrão já é seguido internacionalmente, caso de portais de transparência na saúde adotados nos Estados Unidos, como o The Leapfrog Group e do Hospital Compare, este último produzido pelo governo dos Estados Unidos.

Além das vidas perdidas, o estudo projeta que, em 2015, os eventos adversos consumiram R$ 5,19 bilhões a R$ 15,57 bilhões de recursos da saúde privada brasileira. Não foi possível estimar as perdas para o SUS porque os valores pagos aos hospitais se originam das Autorizações de Internações Hospitalares (AIHs) e são fixados nas contratualizações, existindo outras fontes de receita não operacionais, com enorme variação em todo o Brasil.

Causas brasileiras

Segundo o estudo, no Brasil, a estrutura física, os equipamentos disponíveis para a assistência, a qualidade e o controle de processos assistenciais, o correto dimensionamento do quadro assistencial, as características e dimensão do hospital e o atendimento à legislação sanitária brasileira de grande parte da rede hospitalar não atende aos requisitos mínimos necessários para a segurança assistencial. Além disso, o modelo de compra de serviços hospitalares pela saúde suplementar remunera o procedimento e os insumos e não o resultado assistencial. O atual modelo prevalente no país, de “conta aberta” (fee for service) não contempla os estímulos econômicos que privilegiem a eficiência. “Nosso padrão de remuneração premia o desperdício e a ineficiência. Quanto mais insumos são consumidos numa internação hospitalar, maior é a remuneração do prestador”, observa Carneiro, do IESS.

O trabalho de Couto, Tânia e Rosa indica que a construção de um sistema de saúde mais rigoroso no Brasil envolve um importante conjunto de ações, passando por uma nova forma de prestação de serviços, centrado no paciente, qualificação da rede assistencial e dos profissionais, alterações de modelos de pagamento dos serviços e mudanças legislativas. Sobretudo, destaca o documento, deve haver a implementação de mecanismos de transparência que empoderem o cliente (usuários, operadoras, beneficiários e contratantes de planos de saúde) para uma escolha mais consciente dos serviços, considerando qualidade, custos e desempenhos assistenciais, entre outros.

Fonte: IBSP